Chegou um pessoal novo, do programa da Casa Guilherme de Almeida e amigos da Denise (a pesquisa dela foi fundamental para esse projeto❤️), achei bom fazer uma recapitulação, como estou me matando em outra tradução e não tenho tempo para escrever me veio a ideia (no banho, abençoado seja o chuveiro) de compartilhar o projetinho que submeti para o programa, resumindo tudo em 5k caracteres (que eu estourei, como de costume).
O texto está mais sério e bobinho do que eu gostaria, mas acho que é um bom começo, ou recomeço, como queiram. Falando em quereres, quem quiser pode dar uma olhada nos outros textos, todos com título “VN”, o número e um subtítulo estrambólico. Vale!
A Vida Nova de Dante e seus desafios
Vita Nuova é a primeira das obras-primas de Dante. Composta entre 1292 e 1296, já como um livro, a obra prenuncia a concepção enciclopédica da Comédia e desafia classificações. A primeira palavra de seu título, vida, acena para a tradição antiga das Vidas, gênero biográfico em que Plutarco, por exemplo, se sobressai; no entanto, seu conteúdo, em vulgar florentino, se aproxima mais do gênero autobiográfico desenvolvido por Santo Agostinho. Porém, a mistura de prosa e poesia – o prosímetro – no livro de Dante acaba por afastá-lo do gênero das Confissões, são 41 capítulos em prosa com 31 poemas; destes 25 são sonetos, cinco canções e uma balada. Em certas instâncias o livro também se aproxima do romance medieval, em prosa ou verso; Vita Nuova também é, talvez acima de tudo, um tratado em termos aristotélicos.
Talvez, então, seja mais interessante dizer do que trata Vida Nova do que classificá-lo: de Amor. A primeira camada da narrativa descreve a juventude do poeta, seu primeiro encontro com a mulher amada, a visão febril de Amor que a carrega e faz com que coma o coração do amante, até a sua morte e o contato com a alma de Beatriz; o segundo nível do texto é religioso, as concepções de amor exploradas pelo poeta são uma resposta às noções de amor cortês codificadas por André Capelão e difusas na corte de Eleonora de Aquitânia. Dante acata a forma de representação do amor como emulação de um desnível social, de senhoria e vassalagem, mas com uma diferença essencial desenvolvida pelo movimento stilnovista: a nobreza, aqui chamada de gentileza, não é necessariamente uma nobreza social, e sim do coração, daquilo que há de puro e, portanto, divino.
E a poesia trovadoresca pode muito bem fazer uso do gênero epidítico para falar daquilo que é belo e superior dentro das relações terrenas, mas para falar sobre o divino – ainda que apenas de seus aspectos –, a linguagem deve ser outra. Dante se aproxima do sermo humilis, gênero religioso, cuja base estilística Auerbach caracteriza como sua baixeza, que torna a escritura acessível mesmo ao último dos homens, ainda que haja mistérios e sentidos ocultos no texto (Auerbach, 2007, p. 57).
O próprio Dante afirma que enviou o primeiro soneto do livro para diversos amigos e que o seu sentido não fora captado por ninguém, mas que hoje é claríssimo até para “li piú sempici”. Então, o grande desafio tradutório é manter um estilo simples que consiga portar os mistérios do texto para o português, e diversas são as maneiras de fazê-lo.
O primeiro método seria o da tradução filológica, que revela diversos sentidos, mas acaba por eliminar a beleza e as ambiguidades do original, uma solução parecida seria aquela adotada por Heitor Megale na sua tradução interlingual d’A Demanda do Santo Graal, que moderniza o texto português medieval, mas tal abordagem pode não funcionar para um texto de outra língua.
Deixando de lado hipóteses tradutórias, podemos observar como a obra já foi traduzida para o português brasileiro, concentrar-me-ei nas traduções mais acessíveis.
A primeira tradução de Vita Nuova foi publicada em 1937, assinada por Paulo M. Oliveira e Blasio Demétrio, na verdade pseudônimos de Aristides Lobo e Fúlvio Abramo, militantes trotskistas que traduziram o texto enquanto estavam presos durante a ditadura varguista. O trabalho, a despeito das condições materiais, é de primeiro nível; contudo, sabemos que traduções envelhecem. Além disso, a falta de um aparato crítico moderno afeta muitas passagens.
A segunda tradução que gostaria de comentar é a de Décio Pignatari, publicada dentro do volume Retrato do Amor Quando Jovem (2006). O texto é extraordinário e autônomo, funciona muito bem em português, mas essa autonomia vem com um custo: o distanciamento do original. O jovem Dante de Pignatari é fluido, romântico, mas os conceitos filosóficos abordados pelo poeta se desfazem, ou são traduzidos de maneira imprecisa.
Além dessas traduções integrais, todos os poemas de Vida Nova foram traduzidos por Jorge Wanderley em Vida Nova/Vita Nuova (1988). Haroldo de Campos traduz alguns de seus poemas, bem como poemas de outros poetas estilnovistas em Pedra e Luz na Poesia de Dante (1998), trabalho essencial para compreender o movimento literário.
Dito isso, a proposta baseia-se numa concepção pessoal de uma tradução “justa”. Justa no sentido de fazer justiça ao original, em todas as suas ramificações, e de justeza, isto é, proximidade ao texto, sem que esta seja uma tradução filológica que acaba eliminando sua literariedade. Para atingir este objetivo a tradução será feita com base na edição crítica mais recente e completa de Dante, NECOD (Nuova Edizione Commentata delle Opere di Dante), assim como a consulta às versões anteriores em busca de soluções mais elegantes, naquilo que Mário Laranjeira chama de retradução. Do ponto de vista prático, isso significa que os trechos em prosa causarão, com suas repetições, aliterações e conceitos, maior estranhamento ao leitor. Aqui a tradução é, de certa forma, estrangeirizante, mas os poemas oferecem uma margem de trabalho maior, e é dentro dessa margem que a tradução poética em metro equivalente oferece um equilíbrio ao texto final, com o cuidado de transpor os conceitos necessários para sua compreensão em diversos níveis, preenchendo uma lacuna no meio literário brasileiro.
Bibliografia consultada:
ALIGHIERI, Dante. Vita nuova: a dual-language edition with parallel text. Trad. Virginia Jewiss. Nova York: Penguin Books, 2022.
ALIGHIERI, Dante. Vida Nova. Trad. Paulo M. Oliveira e Blasio Demetrio. São Paulo: Athena Editora, 1937.
ALIGHIERI, Dante. Vida Nova/Vita Nuova. Trad. Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Livraria Taurus-Timbre Editores, 1988.
AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Editora 34, 2012.
AUERBACH, Erich. Dante Como Poeta do Mundo Terreno. São Paulo: Editora 34, 2022.
BOCCACCIO, Giovanni. Vida de Dante. São Paulo: Penguin-Companhia, 2021.
CONTINI, Gianfranco. Un’idea di Dante. Torino: Einaudi, p. 217-24, 1976.
DE CAMPOS, Haroldo; LOMBARDI, Andrea. Pedra e luz na poesia de Dante. Imago, 1998.
LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. São Paulo: Edusp, 1993.
MANUPPELLA, Giacinto. Dantesca luso-brasileira: subsídios para uma bibliografia da obra e do pensamento de Dante Alighieri. UC Biblioteca Geral 1, 1966.
PIGNATARI, Décio. Retrato do amor quando jovem: Dante, Shakespeare, Sheridan, Goethe. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2006.
PIROVANO, Donato; GRIMALDI, Marco. Nuova edizione commentata delle opere di Dante. Ed. Roma: Salerno Editrice, 2015.